quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Amar...


Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
  Carlos Drummond de Andrade.postado por Elisabeth Tavares

Procura da Poesia..


Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Carlos Drummond de Andrade

postado por Elisabeth Tavares

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Uma grande amizade...


Uma ilha onde morava todos os sentimentos:
A alegria, a tristeza, a sabedoria, a amizade, o amor e outros.
Um dia, comunicaram aos moradores que está ilha seria inundada.
Apavorada, a Amizade cuidou para que todos os sentimentos se salvassem.
Ela disse:
- Fujam! A ilha será inundada!!!
Todos correram e pegaram os barquinhos para chegarem ao mais alto dos montes.
Somente a Amizade não se apressou. Ela queria ficar um pouco mais na ilha. Quando já estava quase se afogando, apressou-se em pedir ajuda.
Estava vindo a Riqueza e ela disse:
- Riqueza, me leva junto com você?
- Não posso, você vai sujar o meu barco novo.
Então passou a Tristeza, e a amizade disse:
- Tristeza, posso ir com você?
- Ah! Amizade, estou tão triste que prefiro ir sozinha.
Passou a Alegria, mas a alegria estava tão alegre por ter conseguido um barguinho que nem ouviu o chamado da amizade.
Já desesperada e achando que iria ficar só, a amizade começou a chorar. Então surgiu um barquinho humilde com um velhinho fraterno e de semblante carinhoso que disse:
- Sobe Amizade que te levo.
A amizade sentiu uma felicidade imensa que até esqueceu de perguntar o nome do velhinho. Chegando no alto do monte, ela perguntou para a sabedoria:
- Sabedoria, quem é o velhinho que me trouxe aqui?
E a sabedoria respondeu:
- É o tempo.
- Mas por que o tempo me trouxe aqui?

- Porque só o tempo é capaz de entender e cultivar uma grande amizade.
Vivian Regina

AMIGOS DE ESTRADA.



Certos amigos são indispensáveis, simples
como aquela estradinha de terra no interior,
onde do alto da colina podemos avistá-la inteirinha,
sabemos onde podemos ir e onde podemos chegar,
são transparentes e confiáveis.

Outros, acabaram de chegar,
como estradas que só conhecemos pelo Guia,
e vamos nos aventurando sem saber muito bem seus limites,
é um caminho desconhecido,
mas que sempre vale a pena trilhar.

Tem amigos que lembram aquelas estradas vicinais,
que pouco usamos, pouco vemos,
mas sabemos que quando precisarmos, ela estará lá,
poderemos passar e cortar caminho,
mesmo distante, estão sempre em nossa memória.

Por certo, também existem amigos que infelizmente,
lembram aquelas estradas maravilhosas,
com pistas largas e asfalto sempre novo,
mas que enganam o motorista,
pois são cheias de curvas perigosas,
e quando você menos espera...
é traido pela confiança excessiva.

E existem amigos que são como aquelas estradas
que desapareceram, não existem mais,
mas que sempre ligam a nossa emoção até a saudade,
saudade de uma paisagem, um pedaço daquela estrada,
que deixou marcas profundas em nosso coração.
Foram, mas ficaram impregnados em nossa alma.

E na viagem da vida, que pode ser longa ou curta
amigos são mais do que estradas,
são placas que indicam a direção,
e naqueles momentos em que mais precisamos,
por vezes são o nosso próprio chão.

Paulo Roberto Gaefke

Pode ser....



Pode ser que um dia deixemos de nos falar...
Mas, enquanto houver amizade,
Faremos as pazes de novo.

Pode ser que um dia o tempo passe...
Mas, se a amizade permanecer,
Um de outro se há-de lembrar.

Pode ser que um dia nos afastemos...
Mas, se formos amigos de verdade,
A amizade nos reaproximará.

Pode ser que um dia não mais existamos...
Mas, se ainda sobrar amizade,
Nasceremos de novo, um para o outro.

Pode ser que um dia tudo acabe...
Mas, com a amizade construiremos tudo novamente,
Cada vez de forma diferente.
Sendo único e inesquecível cada momento
Que juntos viveremos e nos lembraremos para sempre.

Há duas formas para viver a sua vida:
Uma é acreditar que não existe milagre.
A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre.
Albert Einstein

Alfabeto do amigo!


A..ceita você do jeito que você é
B..ota fé em você
C..hama ao telefone só pra dizer um oi
D..á amor incondicional
E..nsina-lhe o que sabe de bom
F..ica contigo quando você não está legal
G..rava na memória só os bons momentos
H..umor não lhe falta para lhe fazer sorrir
I..nterpreta com bondade tudo o que você diz
J..amais o julga, estando você certo ou errado
L..ivra-o la solidão
M..anda-lhe pensamentos de ternura e gratidão
N..unca o deixa em abandono
O..ferece ajuda quando vê sua necessidade
P..erdoa e compreende as suas falhas
Q..uer vê-lo sempre feliz
R..i com você e chora quando você chora
S..empre se faz presente nos momentos de aflição
T..oma suas dores e evita que o maltratem
U..m sorriso seu basta para fazê-lo sorrir
V..ai com você a qualquer lugar
X..inga se for preciso e briga por você.Autor Desconhecido

Receita da Amizade!



Um monte de Tranqüilidade
Algumas colheres de Esperança
Duas pitadas de Paciência
Carinho, muito Carinho!

Misture os ingredientes,
leve ao forno pre-aquecido até dourar!

Dica:
Se acontecer de queimar, não se apavore.
O bolo da vida só chamusca por fora,
por dentro não se estraga.
Então, se passar do ponto, remova a camada externa, queimada,
e cubra generosamente com Amizade.

Está pronto o bolo mais gostoso do Mundo!

Bjus......Cyl Rodrigues

Um amigo especial..



Algumas vezes na vida,
Você acha um amigo especial
Alguém que muda a sua vida
Apenas por fazer parte dela.
Alguém que faça você rir
Até não poder mais
Alguém que faça você acreditar
Que realmente existe o bem no mundo.

Alguém que te convença de que realmente existe uma porta destrancada
Apenas esperando que a abramos
Esta é uma Amizade Eterna.
Quando você está para baixo,
E o mundo parece escuro e vazio,
Seu Amigo Eterno levanta o seu astral
E faz daquele mundo escuro e vazio

Parecer de repente cheio e brilhante.
Seu Amigo Eterno enfrenta
Os tempos duros,tristes,
Se você resolve retornar
Seu Amigo Eterno te segue.
Se você perder o seu caminho,
Seu Amigo Eterno te guia
E te alegra.

Seu Amigo Eterno segura a sua mão
E diz que
Tudo vai ficar bem.
Se você achar este tipo de amigo,
Você se sente feliz e completo,
Porque você não precisa se preocupar.
Você tem um Amigo Eterno na Vida,
E o Eterno não tem FIM!!! "D.A"

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Amar é ..

Um Desafio
Amar é entregar-se sem reservas
Deixar ser envolvido pela paz
Promover a justiça
Compadecer com o sofrimento
Não se alegrar com dor
Mesmo que seja de alguém que a procurou.

Amar é buscar ainda que no infinito
A esperança
É ser ousado nas atitudes
Sem ter medo dos espinhos.

Amar é ter a sabedoria do silencio
Mesmo diante uma razão
Não revidar com a mesma moeda
Uma ofensa ou uma falta de educação.

Amar é ter a certeza da vitória.
É acreditar na força da Palavra
Mesmo que apareça obscurecida
E por muitos não entendida

Amar é acreditar no ultimo suspiro
Enxergar através dos olhos o interior da pessoa
Manter a mansidão nas palavras
Mesmo no momento de incompreensão
Tem aberto e disponível o coração
Ataide Lemos

Sonho Solar..




Eu não conheço o sol,
clarão que humilha e me faz manso.
Só o conheço na sombra
que também mata e inocenta.
No lago interior, alma afogada,
afundei a matéria abismal do choro,
facho imenso entre o dia e a noite.
Oh, escuridão eterna,
quando serei raio
partindo do útero da terra?
Eu não conheço a luz temporal
que anda por sendeiros,
buscando as pisadas das estrelas,
gerando um som que me emudece.
Ainda que o meu tamanho se agigante,
não vejo nada além do infinito.
Talvez me ensine mais o sonho
que me alimenta e logo me destrói:
rotor preciso da imensidão,
refrão nefasto da pequenez humana.
A  Miguel Elías Sánchez Sánchez

domingo, 27 de setembro de 2009

Desalento..


Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu chorei
Que eu morri
De arrependimento
Que o meu desalento
Já não tem mais fim
Vai e diz
Diz assim
Como sou
Infeliz
No meu descaminho
Diz que estou sozinho
E sem saber de mim
Diz que eu estive por pouco
Diz a ela que estou louco
Pra perdoar
Que seja lá como for
Por amor
Por favor
É pra ela voltar
Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu rodei
Que eu bebi
Que eu caí
Que eu não sei
Que eu só sei
Que cansei, enfim
Dos meus desencontros
Corre e diz a ela
Que eu entrego os pontos.Vinicius de Moraes
postado por Ederson Peka

O Relógio..


Passa, tempo, tic-tac
Tic-tac, passa, hora
Chega logo, tic-tac
Tic-tac, e vai-te embora
Passa, tempo
Bem depressa
Não atrasa
Não demora
Que já estou
Muito cansado
Já perdi
Toda a alegria
De fazer
Meu tic-tac
Dia e noite
Noite e dia
Tic-tac
Tic-tac
Tic-tac…Vinicius de Moraes
postado por Ederson Peka

Sol de Primavera..

Quando entrar setembro
E a boa nova andar nos campos
Quero ver brotar o perdão
Onde a gente plantou
Juntos outra vez

Já sonhamos juntos
Semeando as canções no vento
Quero ver crescer nossa voz
No que falta sonhar

Já choramos muito
Muitos se perderam no caminho
Mesmo assim é facil inventar
Uma nova canção
Que venha nos trazer
Sol de primavera
Abre as janelas do meu peito
A lição sabemos de cor
Só nos resta aprender

Já choramos muito
Muitos se perderam no caminho
Mesmo assim não custa inventar
Uma nova canção
Que venha trazer
Sol de primavera
Abre as janelas do meu peito
A lição sabemos de cor
Só nos resta aprender..Bento Guedes

Brasil!!!


Brasil! palavra mágica! Quem há
Que o não evoque, ouvindo-a? Mas quem é
Que não se abrasa de esperança e fé,
Ante esta voz que o sonho acordará?
Em – Brasil – há o sabor do cambucá,
Do caju, do ananás ou do café,
O cheiro dos jasmins no Sumaré,
Das mangas fulvas de Itamaracá!
Brasil! brasume irial, nome rubi!
Tão perfumado quanto o bacuri,
Quanto a gardênia do Caparaó!
Brasil! se és beijo, flor e fruto és tu!
Vergel que o ouro do sol transmuda em pó,
E onde canta ao luar o irapuru!
Martins Fontes  postado por Ederson Peka em 06-09-2009

sábado, 26 de setembro de 2009

Velhos e Jovens..

Antes de mim vieram os velhos
Os jovens vieram depois de mim
E estamos todos aqui
No meio do caminho dessa vida
Vinda antes de nós
E estamos todos a sós
No meio do caminho dessa vida
E estamos todos no meio
Quem chegou e quem faz tempo que veio
Ninguém no início ou no fim
Antes de mim
Vieram os velhos
Os jovens vieram depois de mim
E estamos todos aí.Autor/Compositor Desconhecido

Senhas..



Eu não gosto de bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
Eu aguento até rigores
Eu não tenho pena dos traídos
Eu hospedo infratores e banidos
Eu respeito conveniências
Eu não ligo pra conchavos
Eu suporto aparências
Eu não gosto de maus tratos
Mas o que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
Eu aguento até os modernos
E seus segundos cadernos
Eu aguento até os caretas
E suas verdades perfeitas
o que eu não gosto é de bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
Eu aguento até os estetas
Eu não julgo a competência
Eu não ligo para etiqueta
Eu aplaudo rebeldias
Eu respeito tiranias
E compreendo piedades
Eu não condeno mentiras
Eu não condeno vaidades
o que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos modos
Não gosto
Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem...

Adriana Calcanhotto

Vambora..

Entre por essa porta agora
E diga que me adora
Você tem meia hora
Pra mudar a minha vida
Vem vambora
Que o que você demora
É o que o tempo leva

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Dentro da noite veloz

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Na cinza das horas.Adriana Calcanhoto

Esquadros..

Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo, cores
Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve
E como uma segunda pele, um calo, uma casca,
Uma cápsula protetora
Eu quero chegar antes
Pra sinalizar o estar de cada coisa
Filtrar seus graus
Eu ando pelo mundo divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome nos meninos que têm fome

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle

Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm para quê?
As crianças correm para onde?
Transito entre dois lados de um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo, me mostro
Eu canto para quem?

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle

Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço?
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle. Adrianha Calcanhoto

Quem Vem Pra Beira Do Mar..

Quem vem pra beira do mar, ai
Nunca mais quer voltar, ai
Quem vem pra beira do mar, ai
Nunca mais quer voltar

Andei por andar, andei
E todo caminho deu no mar
Andei pelo mar, andei
Nas águas de Dona Janaína
A onda do mar leva
A onda do mar traz
Quem vem pra beira da praia, meu bem
Não volta nunca mais.   ADRIANA CALCANHOTO

O Poeta Aprendiz..

Ele era um menino
Valente e caprino
Um pequeno infante
Sadio e grimpante
Anos tinha dez
E asas nos pés
Com chumbo e bodoque
Era plic e ploc
O olhar verde-gaio
Parecia um raio
Para tangerina
Pião ou menina
Seu corpo moreno
Vivia correndo
Pulava no escuro
Não importa que muro
Saltava de anjo
Melhor que marmanjo
E dava o mergulho
Sem fazer barulho
Em bola de meia
Jogando de meia-direita ou de ponta
Passava da conta
De tanto driblar

Amava era amar
Amava Leonor
Menina de cor
Amava as criadas
Varrendo as escadas
Amava as gurias
Da rua, vadias
Amava suas primas
Com beijos e rimas
Amava suas tias
De peles macias
Amava as artistas
Das cine-revistas
Amava a mulher
A mais não poder
Por isso fazia
Seu grão de poesia
E achava bonita
A palavra escrita
Por isso sofria
De melancolia
Sonhando o poeta
Que quem sabe um dia
Poderia ser. Adriana Calcanhoto

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Noite de Saudade..


A noite vem pousando devagar
Sobre a terra, que inunda de amargura…
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura…
Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura…
E eu ouço a noite imensa soluçar!
E eu ouço soluçar a noite escura!
Porque és assim tão ’scura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!
Saudade que eu nem sei donde me vem…
Talvez de ti, ó noite!… Ou de ninguém!…
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!
(in Florbela Espanca, A Mensageira das Violetas, Antologia)

O Bicho..


Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Manuel Bandeira.

Deus..



Eu me lembro! Eu me lembro! – Era pequeno
E brincava na praia; o mar bramia,
E, erguendo o dorso altivo, sacudia,
A branca espuma para o céu sereno.
E eu disse a minha mãe nesse momento:
“Que dura orquestra! Que furor insano!
Que pode haver de maior do que o oceano
Ou que seja mais forte do que o vento?”
Minha mãe a sorrir, olhou pros céus
E respondeu: – Um ser que nós não vemos,
É maior do que o mar que nós tememos,
Mais forte que o tufão, meu filho, é Deus.
sugado do Jornal de Poesia
Casimiro de Abreu

Saudade...




Nas horas mortas da noite
Como é doce o meditar
Quando as estrelas cintilam
Nas ondas quietas do mar;
Quando a lua majestosa
Surgindo linda e formosa,
Como donzela vaidosa
Nas águas se vai mirar!
Nessas horas de silêncio
De tristezas e de amor,
Eu gosto de ouvir ao longe,
Cheio de mágoa e de dor,
O sino do campanário
Que fala tão solitário
Com esse som mortuário
Que nos enche de pavor.
Então — Proscrito e sozinho —
Eu solto aos ecos da serra
Suspiros dessa saudade
Que no meu peito se encerra
Esses prantos de amargores
São prantos cheios de dores:
— Saudades — Dos meus amores
— Saudades — Da minha terra!
 Casimiro de Abreu   


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quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Mentiras..




Nada ficou no lugar
Eu quero quebrar essas xícaras
Eu vou enganar o diabo
Eu quero acordar sua família
Eu vou escrever no seu muro
E violentar o seu gosto
Eu quero roubar no seu jogo
Eu já arranhei os seus discos
Que é pra ver se volta
Que é pra ver se você vem
Que é pra ver se você olha
Pra mim
Nada ficou no lugar
Eu quero entregar suas mentiras
Eu vou invadir sua aula
Queria falar sua língua
Eu vou publicar seus segredos
Eu vou mergulhar sua guia
Eu vou derramar nos seus planos
O resto da minha alegria
Que é pra ver se você volta
Que é pra ver se você vem
Que é pra ver se você olha
Pra mim.
Adriana Calcanhotto  postado por Ederson Peka em 01-12-2006

Metade..




Eu perco o chão
Eu não acho as palavras
Eu ando tão triste
Eu ando pela sala
Eu perco a hora
Eu chego no fim
Eu deixo a porta aberta
Eu não moro mais em mim
Eu perco as chaves de casa
Eu perco o freio
Estou em milhares de cacos
Eu estou ao meio
Onde será que você está agora? Adriana Calcanhotto  postado por Ederson Peka em 05-09-2003

Por Não Estarem Distraídos..






Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.
Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.
Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto.
No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram.
Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios.
Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.
Clarice Lispector     postado por Diego Eis em 06-02-2004

Soneto Antigo




Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.
Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.
O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.
Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.
 Cecília Meireles                                               postado por Ederson Peka em 16-08-2009

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Das Pedras..




Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida…
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.
  Cora Coralina  A Poesia Eterna, por Marco Dias
postado por Ederson Peka em 23-11-2005

Feliz Primavera..



venham as flores
floreando jardins

enfeitando os dias
tapetes de sonhos

inspirem alegrias
irradie esperanças
e momentos felizes
em ambientes hostis
multicoloridas graças
a magia das alegorias
encantos em fantasias
ornamentos naturais
rescenda nos ares
perfumes e cores
frescores verdores
de suas nuances
nos faça assoviar
canções de ninar
lembrança trazidas
de baús esquecidos
nos faça crianças
risos brincadeiras
nos cubra de luzes
em pétalas macias

sejam estrelas
ao alcance das mãos
beijos perfumados
mimos em bençãos...
...as estações em seus encantos, ano calendário fracionado, primavera a mais florida e charmosa...
EDILOY A C FERRARO
22/09/2009

O meu amigo..




O meu amigo é o que comigo esteja,
Aquele com quem possa conversar.
O que me aceite, me compreenda, e seja
Aquele que também vai me ensinar.

O meu amigo faz com que eu perceba
Que as diferenças são para somar,
Na seriedade e até na brincadeira...
Quanto mais tenho, mais posso doar.
Por isso eu não entendo o preconceito,
Eu não entendo o mundo em que nos vemos.
E me sentindo, às vezes, um estrangeiro,
Eu vou vivendo. Vou reconhecendo
Amigos que carregam em seu peito
O mundo mais humano que eu já tenho.
                                                                                                   (Célia de Lima)

No seu aniversário, peça...




O que tem essa voz o mundo implora...
Essa paz, na verdade de viver...
Essa dança, e a poesia que ela chora,
Ri e adora, brincando de aprender.

O que tem esse olhar a gente chama.
Como quem mais precisa se aquecer.
Faz frio nessa terra! É seca ou lama...
E esse caminho é trégua e bem-querer.

Peça. Faça um pedido no seu dia.
E os bons ventos soprem a seu favor.
Que a fé lhe seja sempre companhia.

Viva! Por qualquer arte e o seu valor!
Mil vivas pelos sonhos que lhe avivam.
E a vida nos seus olhos, meu amor!

Célia de Lima
01/07/2009

Florescendo...




Não me instigue a palavra vazia.
Sou explosão também em silêncio,
transcendência e forma, ação.
Florescendo em ventania.

Espargindo verso e procura,
sou toda essa loucura
de buscar no próprio céu
o que abranda o incêndio
do inferno pessoal.

Mas é assim que os meus canais
se abrem...
a sintonia se refaz
e tudo interage
com Teu plano.
É quando, me realizando,
a cada tanto de passo, em vôo,
me reencanto.

Toda eu sou, então,
pela força do que me convence,
as pontas, em pincel,
que emergem destas mãos,
despontando qual astro novo,
que, sem luz própria e pouco norte,
se banha nas águas do Teu Céu,
enquanto aquarela
a própria sorte.



Célia de Lima
02/07/2007

Pensar em Deus é desobedecer a Deus..

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...

   Alberto Caeiro, em "O Guardador
   de Rebanhos"
.

O Guardador De Rebanhos (IX)



    Sou um guardador de rebanhos O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto. E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz.
    Alberto Caeiro

Tabacaria..


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


    Álvaro de Campos, 15-1-1928


O Tejo..

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

   Alberto Caeiro

Encostei-me...


    Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos, E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício. A minha vida passada misturou-se com a futura, E houve no meio um ruído do salão de fumo, Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez. Ah, balouçado Na sensação das ondas, Ah, embalado Na idéia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã, De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas, De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali, Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse. Ah, afundado Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono, Irrequieto tão sossegadamente, Tão análogo de repente à criança que fui outrora Quando brincava na quinta e não sabia álgebra, Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento. Ah, todo eu anseio Por esse momento sem importância nenhuma Na minha vida, Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos --- Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma, Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.
    Álvaro de Campos

Poema Em Linha Reta..


    Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida... Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos, Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que venho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
    Álvaro de Campos

Aniversário..


    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
    Eu era feliz e ninguém estava morto.
    Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
    E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
    Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
    De ser inteligente para entre a família,
    E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
    Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
    Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
    Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
    O que fui de coração e parentesco.
    O que fui de serões de meia-província,
    O que fui de amarem-me e eu ser menino,
    O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
    A que distância!...
    (Nem o acho...)
    O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
    O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
    Pondo grelado nas paredes...
    O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
    O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
    É terem morrido todos,
    É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
    Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
    Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
    Por uma viagem metafísica e carnal,
    Com uma dualidade de eu para mim...
    Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
    Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
    A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
    com mais copos,
    O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado---,
    As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
    Pára, meu coração!
    Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
    Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
    Hoje já não faço anos.
    Duro.
    Somam-se-me dias.
    Serei velho quando o for.
    Mais nada.
    Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
    O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

    Álvaro de Campos, 15-10-1929

    Magnificat..


      Quando é que passará esta noite interna, o universo, E eu, a minha alma, terei o meu dia? Quando é que despertarei de estar acordado? Não sei. O sol brilha alto, Impossível de fitar. As estrelas pestanejam frio, Impossíveis de contar. O coração pulsa alheio, Impossível de escutar. Quando é que passará este drama sem teatro, Ou este teatro sem drama, E recolherei a casa? Onde? Como? Quando? Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo? É esse! É esse! Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei; E então será dia. Sorri, dormindo, minha alma! Sorri, minha alma, será dia!
      Álvaro de Campos, 7-11-1933

    Apontamento ..


      A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
      Caiu pela escada excessivamente abaixo.
      Caiu das mãos da criada descuidada.
      Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
      Asneira? Impossível? Sei lá!
      Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
      Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

      Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
      Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
      E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
      Não se zanguem com ela.
      São tolerantes com ela.
      O que era eu um vaso vazio?
      Olham os cacos absurdamente conscientes,
      Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
      Olham e sorriem.
      Sorriem tolerantes à criada involuntária.
      Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
      Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
      A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
      Um caco.
      E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

      Álvaro de Campos, 1929

      Passagem Das Horas...



        Trago dentro do meu coração,
        Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
        Todos os lugares onde estive,
        Todos os portos a que cheguei,
        Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
        Ou de tombadilhos, sonhando,
        E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
        A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
        O coral das Maldivas em passagem cálida,
        Macau à uma hora da noite... Acordo de repente...
        Yat-lô--ô-ôôô-ô-ô-ô-ô-ô-ô...Ghi-...
        E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade...
        A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol...
        Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
        Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar...
        Tempestades em torno ao Guardafui...
        E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
        E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...
        Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
        Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
        Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
        Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
        E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
        A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
        Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
        Desta entrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
        Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
        Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
        Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
        Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
        Desta sociedade antecipada na asa de todas as chávenas,
        Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.
        Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
        Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
        Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
        Consangüinidade com o mistério das coisas, choque
        Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
        Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.

        Seja o que for, era melhor não ter nascido,
        Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
        A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
        A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
        Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
        E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
        Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
        E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
        Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

        Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
        É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
        Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
        Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
        Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?

        Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,
        Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.
        Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.
        Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...
        Tão decadente, tão decadente, tão decadente...
        Só estou bem quando ouço música, e nem então.
        Jardins do século dezoito antes de 89,
        Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?

        Como um bálsamo que não consola senão pela idéia de que é um bálsamo,
        A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.

        Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
        Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
        Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
        Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
        Minha quinta na província,
        Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.
        Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
        E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
        Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...

        Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
        Só humanitariamente é que se pode viver.
        Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,
        Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.
        Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim!

        Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
        Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
        Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
        E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
        Amei e odiei como toda gente,
        Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
        E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.

        Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
        Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
        Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo.
        Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,
        Irmã mais velha, virgem e triste, das idéias sem nexo,
        Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,
        A direção constantemente abandonada do nosso destino,
        A nossa incerteza pagã sem alegria,
        A nossa fraqueza cristã sem fé,
        O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
        A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,
        A nossa vida, o mãe, a nossa perdida vida...

        Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
        De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
        Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,
        Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
        Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
        Unia razão para descansar, uma necessidade de me distrair,
        Uma cousa vinda diretamente da natureza para mim.

        Por isso sê para mim materna, ó noite tranqüila...
        Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,
        Tu que não existes, que és só a ausência da luz,
        Tu que não és uma coisa, rim lugar, uma essência, uma vida,
        Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,
        Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,
        Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
        E sê frescor e alívio, o noite, sobre a minha fronte...
        'Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,
        Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,
        Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,
        Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...
        Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,
        Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,
        Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem...

        Sentir tudo de todas as maneiras,
        Viver tudo de todos os lados,
        Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
        Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
        Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

        Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
        Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
        Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
        Seja uma flor ou uma idéia abstrata,
        Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
        E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
        São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
        E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
        Porque ser inferior é diferente de ser superior,
        E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
        Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
        E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
        E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
        E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
        Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
        Basta que ela exista para que tenha razão de ser.
        Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido,
        (No mesmo abraço comovido)
        O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,
        O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,
        E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,
        O ladrão de estradas, o salteador dos mares,
        O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas —
        Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida.

        Beijo na boca todas as prostitutas,
        Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,
        A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos
        E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
        Tudo é a razão de ser da minha vida.

        Cometi todos os crimes,
        Vivi dentro de todos os crimes
        (Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio,
        Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,
        E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).

        Multipliquei-me, para me sentir,
        Para me sentir, precisei sentir tudo,
        Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
        Despi-me, entreguei-rne,
        E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

        Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,
        E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.

        Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,
        Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,
        Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares
        Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.
        Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,
        E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).
        Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!

        (Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
        Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)
        Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,
        Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
        Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta,
        A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,
        Os seus half-holidays inesperados...
        Mary, eu sou infeliz...
        Freddie, eu sou infeliz...
        Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,
        Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fósseis,
        Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —
        Sim, e o que tenho eu sido, o meu subjetivo universo,
        Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento,
        Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!

        Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
        E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim ...
        Meu coração tribunal, meu coração mercado,
        Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,
        Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,
        Meu coração banco de jardim público, hospedaria,
        Estalagem, calabouço número qualquer cousa
        (Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo)
        Meu coração clube, sala, platéia, capacho, guichet, portaló,
        Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,
        Meu coração postigo,
        Meu coração encomenda,
        Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,
        Meu coração a margem, o lirrite, a súmula, o índice,
        Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração.

        Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,
        Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
        Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
        Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes,
        E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.

        (Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,
        Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,
        Com as cabeças femininas coiffées de lin
        E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...
        Aquela que é o anel deixado em cima da cômoda,
        E a fita entalada com o fechar da gaveta,
        Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,
        Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la ...

        Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,
        Definitivamente para todo o resto do Universo,
        E que os carros me passem por cima.)

        Fui para a cama com todos os sentimentos,
        Fui souteneur de todas ás emoções,
        Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
        Troquei olhares com todos os motivos de agir,
        Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
        Febre imensa das horas!
        Angústia da forja das emoções!
        Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
        A cadela a uivar de noite,
        O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia,
        O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
        A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
        Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
        Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos,
        Orgia intelectual de sentir a vida!

        Obter tudo por suficiência divina —
        As vésperas, os consentimentos, os avisos,
        As cousas belas da vida —
        O talento, a virtude, a impunidade,
        A tendência para acompanhar os outros a casa,
        A situação de passageiro,
        A conveniência em embarcar já para ter lugar,
        E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, urna frase,
        E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

        Poder rir, rir, rir despejadamente,
        Rir como um copo entornado,
        Absolutamente doido só por sentir,
        Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
        Ferido na boca por morder coisas,
        Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
        E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.

        Sentir tudo de todas as maneiras,
        Ter todas as opiniões,
        Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
        Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,
        E amar as coisas como Deus.

        Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,
        Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia
        Que a dor real das crianças em quem batem
        (Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —
        E por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)
        Eu, enfim, que sou um diálogo continuo,
        Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,
        Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque
        E faz pena saber que há vida que viver amanhã.
        Eu, enfim, literalmente eu,
        E eu metaforicamente também,
        Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso
        As leis irrepreensíveis da Vida,
        Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
        O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
        Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
        E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...
        Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,
        Sem personalidade com valor declarado,
        Eu, o investigador solene das coisas fúteis,
        Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso,
        E que acho que não faz mal não ligar importâricia à pátria
        Porqtie não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz
        Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,

        Como uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço,
        Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,
        Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,
        Eu, o policia que a olha, parado para trás na álea,
        Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um coral com guizos.
        Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina
        Coada através das árvores do jardim público,
        Eu, o que os espera a todos em casa,
        Eu, o que eles encontram na rua,
        Eu, o que eles não sabem de si próprios,
        Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,
        Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,
        O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,
        O largo onde se encontram as suas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,
        A cicatriz do sargento mal encarado,
        O sebo na gola do explicador doente que volta para casa,
        A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,
        E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...
        Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,
        Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,
        Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,
        O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,
        O sacana do José que prometeu vir e não veio
        E a gente tinha uma partida para lhe fazer...
        Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...
        Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão por que elas se abrem,
        E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...
        Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,
        A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,
        Sem que haja uma lápida no cemitério para o irmão de tudo isto,
        E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer cousa...
        Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,
        E uso monóculo para não parecer igual à idéia real que faço de mim,
        Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,
        Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,
        Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...
        Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,
        O baú das iniciais gastas,
        A entonação das vozes que nunca ouviremos mais -
        Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo
        E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.
        A Brígida prima da minha tia,
        O general em que elas falavam - general quando elas eram pequenas,
        E a vida era guerra civil a todas as esquinas...
        Vive le mélodrame oú Margot a pleuré!
        Caem as folhas secas no chão irregularmente,
        Mas o fato é que sempre é outono no outono,
        E o inverno vem depois fatalmente,
        há só um caminho para a vida, que é a vida...
        Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos,
        Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,
        E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão
        Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.

        Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,
        E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.
        Não me subordino senão por atavisnio,
        E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.

        Das serrasses de todos os cafés de todas as cidades
        Acessíveis à imaginação
        Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer,
        Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira,
        Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi.

        No automóvel amarelo a mulher definitiva de alguém passa,
        Vou ao lado dela sem ela saber.
        No trottoir imediato eles encontram-se por um acaso combinado,
        Mas antes de o encontro deles lá estar já eu estava com eles lá.
        Não há maneira de se esquivarem a encontrar-me,
        Não há modo de eu não estar em toda a parte.
        O meu privilégio é tudo
        (Brevetée, Sans Garantie de Dieu, a minh'Alma).

        Assisto a tudo e definitivamente.
        Não há jóia para mulher que não seja comprada por mim e para mim,
        Não há intenção de estar esperando que não seja minha de qualquer maneira,
        Não há resultado de conversa que não seja meu por acaso,
        Não há toque de sino em Lisboa há trinta anos, noite de S. Carlos há cinqüenta
        Que não seja para mim por uma galantaria deposta.

        Fui educado pela Imaginação,
        Viajei pela mão dela sempre,
        Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,
        E todos os dias têm essa janela por diante,
        E todas as horas parecem minhas dessa maneira.

        Cavalgada explosiva, explodida, como uma bomba que rebenta,
        Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo,
        Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo,
        Galga, cavalo eléctron-íon, sistema solar resumido
        Por dentro da ação dos êmbolos, por fora do giro dos volantes.
        Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstrata e louca,
        Ajo a ferro e velocidade, vaivém, loucura, raiva contida,
        Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas,
        E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim.

        Ho-ho-ho-ho-ho!...
        Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo
        Adiante da própria idéia veloz do corpo projetado,
        Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa,
        He-la-ho-ho ... Helahoho ...

        Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo...
        A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe
        As rodas da locomotiva, as rodas do elétrico, os volantes dos Diesel,
        E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa.

        Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,
        Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,
        Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha
        De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca...
        Ho ----

        Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo!
        Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta!
        Ave, salve, viva a grande máquina universo!
        Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis!
        Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, idéias abstratas,
        A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna,
        A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso,
        O resto, o estático resto que fica nos olhos que param,
        Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves,
        Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem,
        Nos meus nervos locomotiva, carro elétrico, automóvel, debulhadora a vapor

        Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel,
        Campbell, Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a eletricidade,
        Máquina universal movida por correias de todos os momentos!

        Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.
        Todas as auroras raiam no mesmo lugar:
        Infinito...
        Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta,
        Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore,
        E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar
        Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho...

        Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra,
        Rola, auroreada, entardecida, a prumo sob sóis, noturna,
        Rola no espaço abstrato, na noite mal iluminada realmente
        Rola ...

        Sinto na minha cabeça a velocidade de giro da terra,
        E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim,
        Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros
        Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio,
        Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo,
        Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstrato,
        Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas,
        A Meta invisível — todos os pontos onde eu não estou — e ao mesmo tempo ...

        Ah, não estar parado nem a andar,
        Não estar deitado nem de pé,
        Nem acordado nem a dormir,
        Nem aqui nem noutro ponto qualquer,
        Resol,,,er a equação desta inquietação prolixa,
        Saber onde estar para poder estar em toda a parte,
        Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas ...

        Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho

        Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas,
        Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas,
        Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas ...

        Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques,
        Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos,
        Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias,
        Numa velocidade crescente, insistente, violenta,
        Hup-la hup-la hup-la hup-la ...

        Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas,
        Cavalgada energética por dentro de todas as energias,
        Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde,
        Clarim claro da manhã ao fundo
        Do semicírculo frio do horizonte,
        Tênue clarim longínquo como bandeiras incertas
        Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis ...

        Clarim trêmulo, poeira parada, onde a noite cessa,
        Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade ...

        Carro que chia limpidamente, vapor que apita,
        Guindaste que começa a girar no meu ouvido,
        Tosse seca, nova do que sai de casa,
        Leve arrepio matutino na alegria de viver,
        Gargalhada súbita velada pela bruma exterior não sei como,
        Costureira fadada para pior que a manhã que sente,
        Operário tísico desfeito para feliz nesta hora
        Inevitavelmente vital,
        Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático,
        Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas
        Abrem aqu; e ali os olhos cortinados a branco...

        Toda a madrugada é uma colina que oscila,
        ...................................................................
        ... e caminha tudo

        Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras
        E rumor tráfego carroça comboio eu sinto sol estruge

        Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens —
        Sol dos vértices e nos... da minha visão estriada,
        Do rodopio parado da minha retentiva seca,
        Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver.

        Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto sol rua,
        Aros caixotes trolley loja rua i,itrines saia olhos
        Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua
        Passeio lojistas "perdão" rua
        Rua a passear por mim a passear pela rua por mim
        Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá
        A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras,
        O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua
        O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua

        Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim
        Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua
        Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés
        Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços
        Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno,
        Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua.
        Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo.
        Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá.
        Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio!
        Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele!
        Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te
        Por todos os precipícios abaixo
        E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração!

        À moi, todos os objetos projéteis!
        À moi, todos os objetos direções!
        À moi, todos os objetos invisíveis de velozes!
        Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me!
        Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso!
        A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim!

        Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias,
        Velocidade entra por todas as idéias dentro,
        Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os,
        Chamusca todos os ideais humanitários e úteis,
        Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes,
        Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado
        Os corpos de todas as filosofias, os tropos de todos os poemas,
        Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstrato nos ares,
        Senhor supremo da hora européia, metálico a cio.
        Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!
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        Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,
        Declina dentro de mim o sol no alto do céu.
        Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.
        Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?
        Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata,
        Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,
        Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,
        Calcar, calcar, calcar até não sentir.
        Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,
        Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.

        Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos,
        Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços,
        Cavalgada vôo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago,
        Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo — eu.
        Helahoho-o-o-o-o-o-o-o ...

        Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação ...

        Álvaro de Campos, 22-5-1916